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A violência e seus tempos


No final de 2015, os Conselhos de Medicina (CREMESP) e de Enfermagem (COREN) do Estado de São Paulo manifestaram-se sobre crescentes episódios de violência por usuários do sistema de saúde contra médicos e enfermeiros. Pesquisa contratada pelo Cremesp apontou agressões verbais e físicas, 70% delas em instituições públicas (SUS).

Em 26 de julho último, um jovem muçulmano degolou o padre francês Jacques Hamel, numa igreja da Normandia. Costumava queixar-se dos óbices postos à sua religião naquele País.

Algo em comum entre os fatos me pôs a pensar.

Lenta foi a evolução natural das espécies até a emergência do homo sapiens há 100.000 anos. Na vida menos longa das civilizações, a guerra, a luta do homem contra o homem, o vigilante temor de um pelo outro, ensejaram a formação do Estado moderno, a interação horizontal das instituições que o compõem e a delegação de poder aos governantes. Ambos, Estado e Governo, concessões provisórias do povo, condicionadas à garantia de sua proteção. E se é verdadeiro, como Hobbes propõe, que “o homem é o lobo do homem”, a violência é o fundamento do contrato social. E a possibilidade iminente do mal, fundamento das práticas colaborativas interinstitucionais.

Decorre, então, relativizar o bem e o mal absolutos, subsistentes em si mesmos. E a tolerância, não mais evocá-la como virtude espontânea de cada um, mas como esforço continuado pela paz e pelo bem comum.

O qualificativo grego epieikés designa o que é moderado, plástico, razoável, prudente, equitativo. Disso decorre a equitas romana, a justiça como equidade.

O bom cuidado aos enfermos, desde origens pré-socráticas, ancora-se na metáfora do equilíbrio e na equidade como seu valor maior, deveres soberanos a inspirar e a referir sua lógica instrumental. Deve a Empédocles, para quem, se tudo no mundo era composto por água, terra, ar e fogo, aos compostos o amor conferia unidade, e a inimizade, cisão; deve a Hipócrates (século IV a. C.), para quem a saúde é a justa proporção entre os elementos constituintes do homem: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Bons médicos e enfermeiros restabelecem equilíbrios. Se causas externas agridem o organismo, é a harmonia estrutural e funcional do mesmo (entre órgãos e aparelhos, aparelhos e sistemas, eletrólitos e água, catabolismo/anabolismo), a condição necessária para sua vitalidade e higidez. Ao revés, doença é o desequilíbrio provisório ou definitivo na interação dos elementos constituintes do conjunto. Sua expressão, os sintomas. Dor, fadiga, e outros.

Analogamente, se o Estado provê atenção à saúde, distribuição equânime de recursos disponíveis, políticas afirmativas compensatórias aos vulneráveis, respeito incondicional à dignidade de cada um, o Estado é bom, pratica equilíbrio, pratica justiça. Do contrário, a Nação adoece. E a violência é mais um, o mais grave de seus sintomas.

Acesso restrito a consultas e exames, prontos-socorros com filas, baixa oferta de leitos, conotam desprezo E desprezados reagem. Como podem confiar, antes de desconfiar? Como podem assentir, antes de acusar? Enfermeiras e médicos têm seus deveres. Mas, creiam, para eles deveres são escolhas, por amor ao ofício, por amor ao humano. Se ali representam a face do Estado, não são, todavia, o Estado. Se exercem algum provisório poder, fazem-no para beneficiar aqueles que sofrem. Assim como os padres, para o bem dos fiéis.

No Brasil, na França e no mundo, exclusão social maltrata sujeitos. E ao Estado retorna, em ira e rancor. Violência requer uma cultura de amor.

Mauro Aranha-Lima, 57, psiquiatra, mestre em Medicina e Filosofia, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).


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