
Julio Jeha[1]
Quando um autor se apropria de uma obra preexistente e lhe dá outra forma, outro significado, como fizeram as dezenas de dramaturgos que recontaram a história de Pigmaleão e Galateia, isso é plágio ou é apenas a literatura como ela sempre foi? Já na Bíblia, o autor do Eclesiastes declarava, “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol.” Tal constatação milenar está no cerne do romance Navalhas pendentes, de Paulo Rosenbaum, atualizada com algoritmos e mercados globais, inteligência artificial e autores incógnitos.
A literatura fala do ser humano no mundo. A literatura fala de si mesma. Esse aparente paradoxo se dissolve ao pensarmos em qualquer obra de ficção: se é da humanidade que se trata, então toda vez que o texto literário se refere a outro texto semelhante, ele está se referindo, também, à experiência humana. Isso se torna claro no romance de Rosenbaum, porque, além de outras questões, originalidade e plágio, mercado e criatividade, memória e ficção, inteligência artificial e o que significa ser humano. Acrescentem-se os conceitos de autorreferência e recursão, e teremos uma obra do nosso tempo que discute a natureza da literatura, mas que se aplica igualmente a outras artes.
Rosenbaum tece uma bem urdida história em torno de uma editora que produz mais best-sellers do que seria razoável, escritos principalmente por Karel F., um autor que ninguém sabe quem é. Quando o personagem Homero Arp Montefiore é contratado para avaliar manuscritos submetidos à publicação, as coisas começam a se complicar. Ele desconfia que algo ilícito está acontecendo no recôndito da editora. A trama se adensa quando uma das maiores casas editoriais do mundo propõe uma fusão com sua congênere nacional. Assassinatos, fugas e desaparecimentos ocorrem, assim como a culpabilização do narrador, que busca entender o que lhe está ocorrendo.
Homero é o nome do narrador de Navalhas pendentes, mas também é o do suposto fundador da literatura europeia, de cuja obra deriva tudo o que escrevemos e lemos até hoje. Outra referência literária é Karel, tão incógnito quanto Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana, também autora de best-sellers, tão elusiva quanto o autor brasileiro. Esse autor, supostamente brasileiro, tem o mesmo nome de Karel Čapek, escritor checo que escreveu a peça R.U.R. (Robôs Universais de Rossum) em 1920, sobre a robotização de operários. Seria coincidência, no enredo, Homero submeter, sob pseudônimo, A fábrica de robôs latinos para avaliação da editora? Ou ele está recorrendo ao que já foi feito para criar uma obra para outro mercado em contexto diverso daquele em que a palavra “robô” foi primeiro introduzida?
Talvez a noção que mais ocupe o narrador seja a da memória, que aparece sob diversas formas no texto, associadas quase sempre à recuperação dos eventos que lhe aconteceram e que o incriminam. As referências ao passado se dão também quando ele tenta se reconhecer como indivíduo, numa possível caracterização de si mesmo como uma personagem em uma trama. Porém, como hoje sabemos, a memória recria mais do que repete o acontecido. Então o Homero apresentado ao leitor é verdadeiro, num mundo ficcional, ou é recriado por um processo imaginativo, tal como um autor cria suas personagens? Seria a narrativa de Homero autoficção dentro da ficção?
Essas e outras perguntas vão encontrar respostas no algoritmo encomendado pela editora holandesa, o verdadeiro gerador dos inúmeros best-sellers mundiais. A partir de manuscritos rejeitados, o programa consegue combinar trechos em textos orgânicos que fazem sentido e provocam emoções nos leitores. O algoritmo precisou aprender não apenas sobre logos, mas também sobre páthos para que seus livros pudessem passar por obras escritas por humanos.
Voltamos aos parágrafos iniciais desta resenha: a combinação de textos preexistentes para dar à luz outros é plágio ou apenas uma releitura, uma reciclagem, de elementos do nosso repositório cultural? Shakespeare usou material de autores anteriores para criar suas peças, e não se fala de cópia. Afinal, a significação depende do contexto – nenhum signo tem sentido no vazio.
Essa capacidade recursiva da literatura se alia a de autorreferência no final de Navalhas pendentes para surpreender o leitor, que não deveria se espantar, em vista do que a narrativa vinha indicando. Falar mais sobre o final revelaria o desfecho com que Paulo Rosenbaum encerra o livro. Basta dizer que, a partir da forma do romance de enigma, o autor atualiza a discussão tanto do fazer literário quanto do mercado editorial. E o faz numa narrativa fluida que alia questões éticas e estéticas a denúncias políticas.
Serviço
Descrição: O romance Navalhas pendentes, de Paulo Rosenbaum, é, sobretudo, uma armadilha que, entre citações, ironias e referências intertextuais, arma e desarma a leitura. A trama põe em perspectiva a sanidade do narrador e a linearidade da história. Complô, ilusão e farsa fazem do enredo um labirinto e fazem multiplicar realidades instáveis ou fantasias existenciais de um protagonista que, aparentemente, não merece muita credibilidade. Desde o início, o leitor sabe que está pisando em solo movediço, afinal, amnésia é uma das palavras-chave que, intermitentes, funcionam como faróis precários no nevoeiro. O narrador, Homero Arp Montefiore, tal qual o seu homônimo grego, faz precipitar as certezas por um vórtice e, se Goya tinha razão e o sono/sonho da razão produz monstros, tanto um quanto o outro assombram o personagem com lâminas que se inscrevem na narrativa, como signos denunciadores. Sobre o herói e os crimes imputados ou cometidos por ele, pesam navalhas, facas, canivetes e outros fios mais sutis. Daí serem sempre pendentes tanto as ameaças e quanto as certezas. Nesse sentido, quando o personagem, revisor de textos e aprendiz de escritor, se corta com o gume de uma folha de papel, aguçam as lembranças do leitor estudos em vermelho, fisiologias da composição, punições para a inocência e mortes ao pé da letra. Uma gota de sangue sobre o papel não é rastro fácil de seguir. O narrador parece viver em um pesadelo, como nos enredos de Kafka, engendrado por um escritor que cria labirintos com inúmeras entradas e algumas saídas, todas inacessíveis. O leitor, como uma espécie de detetive que segue indícios, pistas e enigmas, por sua vez, se enovela numa história de crimes, facas e segredos. (Lyslei Nascimento)
Livro: Navalhas pendentes
Gênero: Romance
Autor: Paulo Rosenbaum
Editora: Caravana Grupo Editorial
Ano: 2021
Lançamento: a ser definido
Preço: R$ 62,90
Contato: rosenbau@alumni.usp.br Autor: Paulo Rosembaun
Fotografia da capa: Paulo Rosenbaum
ISBN: 978-65-87260-74-7
Páginas: 328
Tamanho: 14×21
Paulo Rosenbaum nasceu em São Paulo em 1959. É médico e escritor. Possui Mestrado em Medicina Preventiva, Doutorado em Ciências e Pós-doutorado em Medicina Preventiva pela USP, com mais de uma dezena de livros publicados na área. Escreve, regularmente, para o jornal Estado de São Paulo, no blog “Conto de notícia”. Roteirista e produtor de documentários, atuou como editor de revistas científicas no campo da saúde. É pesquisador na área de clínica médica, semiologia clínica, relação médico-paciente, prevenção e promoção da saúde e pesquisa de medicamentos. Além de ensaísta, é poeta, contista e romancista. Antes de Navalhas pendentes, publicou os romances: A verdade lançada ao solo (Record, 2010) e Céu subterrâneo (Perspectiva, 2016).
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