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CNE DE VIOLÊNCIA SEXUAL E INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO PREVISTA EM LEI


Referente: Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 124.306-RJ – Inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre.

A Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei tomou conhecimento da decisão proferida pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 124.306-RJ[i], em 29/11/2016, que, num caso específico, afastou a prisão preventiva de acusados pela prática de aborto, envolvendo profissionais (Edilson dos Santos e Rosemere Aparecida Ferreira) de uma clínica em Duque de Caxias denunciados, indiciados nos crimes previstos nos art. 126 (aborto) e 288 (formação de quadrilha) do Código Penal[ii], em concurso material por quatro vezes, por terem provocado “aborto na gestante/denunciada (...) com o consentimento desta”. Citada decisão tem a seguinte ementa:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.

Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.

Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.

A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.[iii]

É oportuno citar que, ao concluir seu voto, o Relator, Min. Luís Roberto Barroso, fundamenta:

Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido. De acordo com o regime adotado em diversos países (como Alemanha, Bélgica, França, Uruguai e Cidade do México), a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.

No caso em exame, como o Código Penal é de 1940 – data bem anterior à Constituição, que é de 1988 – e a jurisprudência do STF não admite a declaração de inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição, a hipótese é de não recepção (i.e., de revogação parcial ou, mais tecnicamente, de derrogação) dos dispositivos apontados do Código Penal. Como consequência, em razão da não incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à interrupção voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há dúvida fundada sobre a própria existência do crime, o que afasta a presença de pressuposto indispensável à decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do caput do art. 312 do CPP. (sem grifos no original)

O voto destaca, ainda: a relevância da vida potencial do feto; que o aborto é uma conduta que deve ser evitada pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve; que é papel do estado ofertar educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparar a mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas; que a interrupção da gravidez, cumprindo o Estado sua obrigação de implementar políticas públicas voltadas à saúde sexual e reprodutiva, será um acontecimento raro.

Posição da CNE

Ressalte-se, em primeiro lugar que, para o Direito, o aborto consiste na “interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção”, independentemente da idade gestacional e da existência de expulsão fetal, segundo os manuais de direito penal.

A Medicina considera abortamento o ato de abortar, enquanto aborto é considerado o produto do abortamento, como consideraremos nessa nossa posição.

A recente decisão proferida pela 1ª Turma do STF é uma situação sui generis e não significa a disseminação da prática do abortamento, mas que em determinadas situações às mulheres cabe a decisão sobre a continuidade ou não da gravidez, assegurando-lhes o direito a fazer suas escolhas existenciais.

Ante a significativa inovação introduzida pela decisão da 1ª T do STF, que de forma direta e indireta terá reflexos na atuação de profissionais da medicina, esta CNE destaca seu entendimento no sentido de que a criminalização não impede a prática de abortamentos, apenas acarreta a sua realização de forma clandestina e insegura. Nenhuma mulher tem um filho ou opta por uma interrupção da gravidez em função das leis do Estado ou por imposição de qualquer outra natureza ética ou moral. É este um primeiro ponto: a mídia e os debates sobre o tema fazem a pergunta: Você é contra ou favor do abortamento? Ninguém é a favor da interrupção da gestação! O que se discute é se ele deve ser tratado pelo Código Penal e ameaçar mulheres que a ele recorrem com pena de cadeia? É muito claro que as mulheres não devem ir para a cadeia! (Gollop, 1998)[iv]

A criminalização do abortamento é ineficaz. Segundo Pesquisa realizada pela ANIS – Instituto de Biodireito de Brasília, que entrevistou 2002 mulheres de 18 a 39 anos em 2015 que optaram pelo abortamento (Pereira, AP e Diniz, 2015)[v], os métodos utilizados por elas foram medicamentoso (52%) e outros métodos (48%). O perfil dessas mulheres era representado por 67% delas com filhos, 88% eram filiadas a alguma religião e o maior número figurava na faixa de 20 e 24 anos de idade. Todas as classes sociais eram representadas nesta amostra estudada. Esses dados mostram claramente que a penalização do abortamento é ineficaz! A pesquisa revela que 501.000 mulheres recorrem à interrupção da gestação cada ano no Brasil e a má assistência no abortamento inseguro é a segunda causa de internações em Ginecologia no SUS, concorrendo à maioria das 250.000 curetagens uterinas lá realizadas.

Ressalte-se que, no mundo, estima-se que as taxas de abortamentos são de 28 por 1000 mulheres com idades de 15 a 44 anos. A maior taxa está na Europa Oriental (43 por 1000). A Europa Ocidental apresenta a menor taxa (12 por 1000), onde a interrupção da gestação é legalizada na maior parte dos países, acessível e realizada com segurança. No mundo, 49% dos abortamentos são classificados como inseguros e ocorrem na sua maioria em países em desenvolvimento. Um dado médico importante é que o abortamento realizado em países em que está legalizado, tem baixo risco de ocasionar complicações. Neste sentido, o estudo da California Medicaid demonstrando que em 54.911 procedimentos de abortamento, a taxa de complicação foi de 2,1%. As complicações severas são bastante raras de acontecer, como admissão hospitalar, necessidade de cirurgia ou transfusão. As mortes por abortamento ilegal inseguro contribuem para um percentual de todas as mortes maternas no mundo. A OMS estima que 1 morte materna em 8 seja devido a complicações relacionadas ao abortamento. Em alguns países não desenvolvidos, onde o abortamento é ilegal, 25% ou mais de todas as mortes maternas estão relacionadas ao abortamento ilegal. (Steinauer, 2016) [vi]

Este mesmo estudo, no que diz respeito às alterações psiquiátricas menciona que, em 1993, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais revisado (DSM-IV-R) da Associação Psiquiátrica Americana deixou de considerar o abortamento um tipo de fator de estresse psicossocial. Não há evidências a partir de grandes avaliações que as mulheres que interrompem uma primeira gravidez não desejada tenham maiores riscos de depressão subsequente que aquelas que escolhem levar a gravidez adiante. A frequência de alterações psiquiátricas em mulheres que realizaram um procedimento de interrupção de gravidez é similar àquelas que não têm este histórico.

No Brasil, o abortamento é um grave problema de saúde pública, pois são escassos e insatisfatórios os projetos de saúde sexual e reprodutiva. Em países onde estes projetos existem, as taxas de gravidez indesejada são baixas e, consequentemente, as de interrupção da gravidez também, sendo o abortamento prática legalizada, o que confere garantias às mulheres. Além do que, no Brasil temos aproximadamente 65 serviços credenciados junto ao Ministério da Saúde (2015) como referência no abortamento legal. Entretanto, alguns deles não realizam o procedimento previsto em lei, somando-se a problemas como falta de informação da população e das equipes médicas, precariedade dos serviços de saúde e dos institutos de medicina legal, com sérias restrições ao acesso das mulheres aos direitos reprodutivos assegurados constitucionalmente.

Por fim, outros dados que reforçam a decisão da 1ª Turma do STF quanto ao desenvolvimento gestacional, dizem respeito à incidência do abortamento espontâneo, que é a complicação mais comum na gravidez, sendo definido como o término da gravidez de menos de 20 semanas de gestação e consiste na perda espontânea de um embrião ou feto pesando menos de 500g. A verdadeira incidência do abortamento espontâneo é desconhecida, mas cerca de 15% das gestações clinicamente evidentes e até 50% das gestações laboratorialmente evidentes terminam desse modo. E 80% dos abortos espontâneos ocorrem antes das 12 primeiras semanas de gestação (Decherney, Nathan, Laufer, Roman, 2014[vii]).

Feitas tais considerações, a CNE vem manifestar sua concordância com as conclusões sobre a criminalização do abortamento, entendendo-a como conduta que viola os direitos fundamentais das mulheres, sendo incompatível com o sistema de proteção de Direitos Humanos da Mulheres. Torres (2015), Juiz de Direito e titular da 1ª Vara do Júri da Comarca de Campinas escreve em sua publicação Aborto e Constituição: “A criminalização do aborto com o consentimento da gestante é incompatível com o sistema de proteção dos Direitos Humanos das Mulheres, o qual foi incorporado ao sistema constitucional brasileiro, constitui um instrumento ideológico de controle da sexualidade feminina, representa um mero instrumental simbólico da ideologia patriarcal, não tem sido eficaz nem é útil para a proteção da vida intrauterina, está sendo mantida com um enorme custo social, impede a implantação e efetivação de medidas realmente eficazes para o enfrentamento do problema, acarreta às mulheres terríveis sequelas e morte, bem como contraria, de modo flagrante, os princípios jurídicos e democráticos da idoneidade, da subsidiariedade e da racionalidade e afronta, também, as exigências jurídico-penais de não criminalizar uma conduta de modo simbólico, nem para impor uma determinada concepção moral ou punir condutas frequentemente aceitas ou praticadas por parcela significativa da população. Portanto, criminalização do aborto com o consentimento da gestante é inconstitucional.”[viii]

A posição assumida pela 1ª Turma do STF demonstra que o que foi considerado até o momento como crime viola os princípios constitucionais e precisa ser amplamente discutido pela FEBRASGO e por seus associados. O abortamento no Brasil é uma realidade. Continua sendo feito clandestinamente e ninguém sabe o número exato de procedimentos, o que coloca as mulheres em situação de risco tanto em relação à questão da morbidade quanto da mortalidade.

Graças ao convite formulado pela Diretoria da FEBRASGO a este Presidente da CNE, foi apresentado, durante a AGF em Salvador, no dia 02 de junho de 2017, pedido de manifestação da FEBRASGO a favor da descriminalização da mulher que se submete a um abortamento, o que foi aprovado.

Posteriormente àquela aprovação, este documento foi encaminhado à Diretoria da FEBRASGO pela CNE de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei. Foi apresentado na AGF – Assembleia Geral da FEBRASGO, pelo Presidente da CNE, no dia 15 de junho de 2018 e aprovado por unanimidade por todos os Presidentes das Federadas presentes.

[i] O acórdão ainda não está disponível, apenas o voto do Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Acompanhamento processual disponível em http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4637878, acessado em 12/12/2016.

[ii] Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848/1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm, acessado em 12/12/2016.

[iii] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf, acessado em 12/12/2016.

[iv] GOLLOP, Thomaz Rafael; PIMENTEL, Sílvia. Congressistas: cuidem bem das mulheres. Femina, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 51-52, jan./fev. 1998.

[v] MADEIRO, ALBERTO PEREIRA; DINIZ, DEBORA. Induced abortion among Brazilian female sex workers: a qualitative study. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso) , v. 20, p. 587-593, 2016.

[vi] STEINAUER, J., Overview of pregnancy termination. UpToDate, acessado em 12/12/2016, www.uptodate.com, Jul.26,16.

[vii] DECHERNEY, A H, NATHAN, L, LAUFER, N , ROMAN, A S, Current Diagnóstico e Tratamento, 11ª Edição, Porto Alegre: AMGH, 2014.

[viii] TORRES, JHR – Aborto e Constituição 1ª Ed – São Paulo:Estúdio Editores, 2015.

Prof. Dr. Rosires Pereira de Andrade

Presidente da CNE de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei

Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)


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